Desde que me lembro que a corrida faz parte das minhas memórias; das menos agradáveis, mas ainda assim, das minhas memórias. Recordo o horror das corridas de aquecimento à volta da escola durante as aulas de Educação Física, o enfado de assistir a provas de atletismo sabe-se lá onde só porque o pai corria e o esforço ígneo em ganhar gosto pela corrida precavendo a hipótese de não haver ginásios no Algarve (pensamento totalmente estúpido que tive há cerca de 12 anos atrás quando me vi forçada a sair de Cascais).
Resisti com todas as minhas forças a essa forma de atividade física. Sempre argumentei com coisas do género “Correr?! Só atrás de um gajo bom” ou mais recentemente “Correr?! Nem atrás de um gajo bom”. Na realidade o que este pseudo-humor esconde é uma total falta de espirito de sacrifício para suportar cansaço, suor ou respiração ofegante. É verdade que desde os 24 anos de idade que frequento ginásios, que já pratiquei inúmeras modalidades diferentes e que consigo ter momentos fantásticos de prazer ao fazer uma ponte numa aula de body-balance ou em cima de uma bicicleta numa aula de spinning, mas lá no fundo, bem no fundo, o que eu faço bem é ronha. Socorro-me das tonturas para não ir mais longe nos alongamentos ou das dores nas costas para recusar os abdominais em prancha e até da falta de forma para não me esforçar muito na passadeira ou na elíptica.
Mas agora que sou doente cardíaca e posso dizê-lo, já quase estabilizada, o exercício físico e a perda de peso têm de ser uma prioridade. Não adianta encher-me de comprimidos e embarcar nesta velhice prematura descartando logo ao início uma batalha que provavelmente consigo vencer. Por essa razão, calcei os ténis, coloquei o monitor de frequência cardíaca (grande aliado destes meus dias sem ritmo) e lancei-me à estrada. No primeiro dia não abusei, mantive-me atenta aos sinais (qualquer cansaço extremo ou falta de ar, obrigam a paragem imediata) e desfrutei a medo da paisagem à beira ria que me envolvia. No segundo dia, descontraí, evitei verificar a frequência cardíaca (muito baixa por causa da medicação) e conjuguei a paisagem com a música de sempre do meu mp3. Acabei por correr 15 minutos sem parar. Acho que foi a primeira vez na vida que o fiz.
Ao terceiro dia, que ainda virá, vou conjugar os meus ténis novos (oferta da cara-metade que até comprou outros para ele ) com a minha nova playlist e espero conquistar o mundo!
Se eu fosse o Tarantino estaria muito feliz com mais um efeito secundário do meu beta bloqueador pois iriam alimentar um fetiche que, infelizmente nada me diz. Depois de alguns dias de quase total ausência de efeitos secundários lá chegou ontem a boa da alucinação. Desta vez o alvo de tal ilusão foram os meus pés, que de tão frios e dormentes que estão já praticamente não os associo ao meu corpo, mas imaginá-los em movimento na escuridão do meu quarto enquanto percecionava flashes de luzes pode ser considerado uma experiência nova mas que de fascinante não tem nada.
Não fosse estar consciente de que este é mais um efeito secundário da minha medicação e o pânico ter-se-ia instalado de forma instantânea. Mas não, fiquei por ali na cama, a tentar retomar a consciência das minhas extremidades corporais que sofrem da falta de irrigação sanguínea por causa do maldito beta bloqueador e a tentar concentrar-me para dormir. Claro que o facto de ouvir os zombies do Walking Dead a grunhir na sala ao lado também não ajudou. Grunhido para cá, grunhido para lá e eu ali deitadinha, muito quietinha na cama a imaginar o que se estaria a passar e ansiar para que não imaginasse mais nada, pois os meus pés ambulantes eram alucinação suficiente para uma noite.
Consegui atingir os meus intentos ao fim de algumas horas e acabei por dormir como um bebé. Acordei cansada, com as minhas extremidades corporais ainda mais dormentes e frias e com a sensação de que a concentração de bisoprolol que tomo é demasiado grande, embora uma pílula dure 2 dias e não me controle eficazmente as arritmias.
Aguardo ansiosamente pelo passagem das primeiras duas semanas de tratamento imbuída da esperança que tudo voltará ao normal, nem que seja por causa das drogas.
Durante anos achei que não tinha qualquer problema especial e desde há umas semanas sei que isso não é verdade. Pelos vistos durante anos – acho que devem ser mesmo muitos anos – sofri e continuo a sofrer de arritmias. Muitas arritmias; tantas que elas justificam coisas como o cansaço extremo que por vezes me impedia de conseguir falar e as noites de insónia.
O diagnóstico médico foi fácil, afinal quando se têm mais de 11000 arritmias em cerca de 15 horas não há erro que possa acontecer. Já para mim, a assunção de que poderia ser uma pessoa com uma insuficiência coronária não encaixou bem nos espaços emocionais que ainda restam por ocupar nesta minha cabeça oca. Depois do espanto total veio a revolta. A revolta que me levou a deixar a medicação assim sem mais nem menos.
Na realidade não foi bem deixar a medicação, foi mais substituí-la por outra que me agradasse mais. Afinal de contas sou formada em química; posso não saber o que é um beta bloqueador, mas o nome não me inspirava nada de bom e ainda por cima não me parecia que ele me tivesse ajudado a melhorar, antes pelo contrário. Assim sendo, lá se foi embora o beta bloqueador e entrou o bom do ansiolítico que na minha óptica seria o substituto adequado para a minha falta de ânimo física e psíquica.
O resultado não foi nada bom. Realmente a capacidade de trabalho duplicou ou mesmo triplicou, mas a taxa de arritmias deve ter subido novamente para valores que ultrapassam em mais de 20 vezes o que é comum, com o inconveniente de agora aquilo que sempre senti e que antes não me incomodava, se assemelhar à goteira interminável de uma torneira que não nos deixa concentrar em mais nada.
Este período de rebeldia durou 24 horas e serviu para escrever mentalmente um lindo post que foi depois lido em voz alta ao cardiologista que continha pérolas como:
- Se eu me sinto mal a tomar a medicação, mais vale sentir-me mal sem a tomar!
- Eu tenho Síndrome de Meniére, será que não é isso que me está a acontecer embora continue à espera das vertigens??!!
- Se minha frequência cardíaca está a 40 pulsações por minuto será que o coração não pode parar???!!!
E quando todos os argumentos foram desmontados, cruzei as pernas, endireitei as costas e com um ar altivo pejado de sotaque de menina de Cascais, continuei dizendo:
- Sinto-me mal e não estou para isto!
- Dê-me mas é um comprimido como deve ser e acabe-me com isto, já!
- Sabe doutor, não tenho perfil nem pachorra para situações destas!
Escusado será dizer que saí de lá a tomar a mesma medicação, com a ameaça de que a situação clínica só deveria estabilizar daqui a uns dois meses e que deveria ter paciência com os efeitos secundários do medicamento e evitar a interrupção do tratamento de forma abrupta.
Ups!.Efeitos secundários???!!! Aqui estava a minha grande falha; não tinha pensado nos efeitos secundários que estão perfeitamente quantificados na bula. Tenho para aí metade deles: batimento cardíaco lento, exaustão, náuseas, sensação de frio nas extremidades, fraqueza muscular e até os pesadelos.
Estou tramada, mas muito criativa!
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