Gosto de levar o puto ao infantário já equipada para correr. Aproveito a caminhada como aquecimento ligeiro e encho-me de deleite quando oiço o miúdo de dois anos perguntar-me se estou a usar o relógio da ginástica (dispositivo mágico caríssimo oferecido pela cara metade, que a partir do meu pulso debita informações como a frequência cardíaca e o local onde me encontro; esta última informação muito importante para quem comigo divide cama e mesa). É uma realidade que o esforço despendido na atividade da corrida é tremendo, mas cada vez mais penso em continuar e em melhorar as minhas marcas (ontem baixei de 8 min/km para 7 min/km e foi muito bom).
Enquanto corro só me lembro do que li algures há muito tempo, talvez décadas - Will Smith considera que a chave da vida é correr e ler. A corrida ensina-nos a não desistir e a leitura ensina-nos a aprender com a experiência dos outros. Durante a maior parte da minha vida só pratiquei a segunda opção, começo agora com a primeira. O entusiasmo tem sido crescente e o bem estar proporcionado por esta atividade matinal é viciante. E mais do que tudo, o facto de se aproximar mais uma reavaliação da minha condição cardíaca ainda torna tudo isto mais importante.
Também penso muito no Haruki Murakami e no seu auto retrato enquanto corredor de fundo e também eu consigo ter uma imagem de mim enquanto animal em esforço em que mais nada interessa, ou melhor, quase mais nada interessa. Faço aqui esta ressalva porque a realidade farense leva-me a estar de olho no bairro degradado que circundo nesta minha prática matinal e na comunidade cigana que o embebe. Se de início a segurança era a minha principal preocupação, agora é mais o descortinar de coisas estranhas que acontecem como a existência de dois grupos, um de mulheres e crianças e outro de homens, que contemplam a ria e que não estabelecem contactos entre si que ocupa parte do meu cérebro. A outra parte ocupa-se em acreditar que qualquer um dos outros frequentadores desportistas com quem me cruzo me encare como uma verdadeira desportista capaz de alcançar as marcas mais incríveis de sempre.
Desde que tive o fanico que a minha vida não mudou. Tem sido exatamente igual à vida que tive antes de ter o fanico. Continuo a acordar à mesma hora, a fazer as minhas refeições da forma que sempre fiz e a transformar o meu tempo ocioso de forma constante sem grandes modificações.
Com o fanico, não veio a serenidade e nem a ansiedade. Simplesmente tudo continuou da mesma forma que sempre foi. É certo que durante o fanico não sabia o que me estava a acontecer. Primeiro fiquei interrogativa sobre os sintomas, depois fiquei receosa com o prolongar da situação e por fim fiquei chorosa com o intensificar da condição.
Com o fanico, não me preocupei com ninguém, nem achei que poderia ser ali o meu fim ou início de algo realmente preocupante. Também não curti com a viagem de INEM de sirene ligada pelas ruas de Faro, pois o paramédico insistia em conversar comigo sobre alimentação, exercício físico, hábitos saudáveis e até sobre o novo nome da rua onde moro.
Com o fanico também não fiquei mais permissiva às coisas que me rodeiam, arranjando desculpas para aquilo que corre mal. Irritei-me ligeiramente com o segurança que me viu chegar ao Hospital de mala chique pendurada no antebraço e pensou que eu fosse acompanhante de um qualquer doente e que só depois de ver que me colocavam pulseira laranja é que percebeu que eu estava mesmo a ter um fanico. Também não gostei de ter de ir pedir a minha medicação depois de uma espera que considerei longa e que estaria a levar ao início de novo fanico.
Mas com o fanico gostei de uma nova coisa – a de estar mais de uma hora à espera de realizar exames médicos. Esta delonga foi amortizada com a leitura de mais um livro de Haruki Murakami (só mais um de entre tantos que já lí; quase todos acho) – O Sono. Foi aí que percebi que mais uma vez o universo murakamiano resolveu invadir o veruskiano. Tal como n’O Sono onde na realidade nada acontece a não ser a leitura de Anna Karenina, também na história do meu fanico a única coisa relevante foi mesmo a leitura de um conto.
Se no final d’O Sono tudo se conjuga para mais um final “à Murakami” onde não se encontram respostas e ainda surgem mais questões, também no final de toda esta minha história, auguro e anseio, por uma resolução/explicação do fanico “à Murakami”- uns bichos imaginários, e talvez malucos, entraram no meu coração maravilhoso e resolveram espicaçá-lo para que eu saísse do torpor dos últimos tempos.
Finalmente acabei o 1Q84. Gostei, gostei muito, mas não o amei de paixão como os anteriores livros do Haruki Murakami. Talvez por ser demasiado longo, talvez por ter demorado muito tempo a lê-lo (especialmente o terceiro volume) ou mesmo talvez por não ser tão original e tão bom como os anteriores.
Depois de duas luas no céu, polícias com armas demasiado ameaçadoras e amores entre personagens que não se viam há anos e até uma gravidez concebida “sem pecado” tudo volta a uma aparente normalidade. Quem ama pode viver esse amor, o Povo Pequeno foi deixado para trás e o passado negro pode ser obliterado para sempre e nem sequer crisálidas de ar voltarão a ser tecidas.
O meu fascínio pelo Japão começou em menina. Nessa altura, a cultura japonesa era praticamente uma incógnita para os portugueses acabadinhos de sair de um período de “cegueira”, mas não sei bem explicar porquê, a vontade de conhecer o que se passava por lá, ia crescendo devagarinho dentro de mim.
Não se tratava de uma paixão exacerbada mas sim de um amor construído de forma lenta e sólida. Queria andar pelas ruas de Tóquio, visitar templos, jogar pachinko e tentar compreender como é que aquele povo gostava tanto de Manga.
Depois vieram as leituras. Comecei com Yukio Mishima, seguiu-se Kenzaburo Oe e por fim o maior de todos, Haruki Murakami. Deste último já li quase tudo. Comecei com Sputnik, Meu Amor, escolhido de entre vários na prateleira porque estava mal de amores e precisava de carpir a minha dor…Seguiram-se muitos outros, Norwegian Wood, Em Busca do Carneiro Selvagem, Kafka À Beira-Mar (um dos livros do meu Top 3), Crónica do Pássaro de Corda, Auto-Retrato do Escritor Como Corredor de Fundo, etc., etc.
Neste momento estou prestes a acabar o 2º volume de 1Q84 e apesar de, para mim, nem tudo neste livro ser irrepreensível, é com alegria que me congratulo que o universo fantasioso de Murakami invadiu já a sociedade e a política portuguesas. Nesta obra, um dos protagonistas é um professor de Matemática que acumula com a profissão de ghostwriter escrevendo um livro que se torna num grande sucesso, ganhando um prémio e atingido vendas muito elevadas.
Em Portugal existe já pelo menos uma empresa a oferecer este serviço – a Culture Print. De acordo com esta notícia, a empresa oferece os seus préstimos de escrita de livros, blogues e discursos a quem tenha dificuldade em exprimir-se por palavras.
Julgo que o último cliente a solicitar este tipo de serviços terá sido o Serviço Nacional de Saúde, pedindo-lhes que redigissem a missiva que está a chegar a alguns laboratórios farmacêuticos, “exigindo perdões significativos da dívida em atraso, em troca do fornecimento de medicamentos e diagnósticos in vitro, para avançarem com o seu pagamento”.
Não há dúvida que o estilo de Murakami está lá (a “fantasia” da proposta encontrada para se resolverem as dívidas e a “solidão” intuída para quem não embarque nesta solução), embora fique um pouco aquém do original. Não sei se será um best-seller.
Se a maturidade me levou a alcançar novas etapas na minha vida, a maternidade que lhe sucedeu também muito tem contribuido para tal.
Depois de um período mais conturbado marcado pela adaptação a novas regras, horários e rotinas, recomecei lentamente a recuperar a minha vida pré-maternidade. Todos me avisam que tal seria impossível; jamais voltaria a ter tempo disponível para mim, os afazeres multiplicar-se-iam, o bebé necessitaria de mim em permanência e sobretudo os meus interesses pessoais iriam alterar-se radicalmente e jamais voltaria a ser a pessoa que fui durante os meus primeiros 40 anos de existência.
Quase quatro meses volvidos sobre o nascimento do meu filho e enquanto ele chora e grita na espreguiçadeira que está ao meu lado, reflicto sobre as reais mudanças que me envolvem e mais uma vez encontro paralelo com um mundo que desafia as supostas leis do real.
No mundo real, em tempo de crise, quem trabalha quer manter o seu emprego. O rendimento mensal é precioso e por isso há que ser profissional, trabalhar com afinco e prestar serviços de forma competente. Num mundo surreal, os estabelecimentos comerciais situados em localidades à beira-mar com esplanadas de sonho levam clientes a esperar mais de 2 horas para lhe serem servidos hamburgueres, servem refeições antes dos talheres estarem na mesa ou levam mais de 10 minutos a discutir qual será o troco correcto a devolver ao cliente.
No mundo real, a segurança é uma preocupação. Viver de modo tranquilo e sereno é um objectivo almejado por todos e as expectativas colocadas nas forças de segurança são enormes. Num mundo surreal, os polícias “micam” mães ocupadas a colocar a cadeira do bebé recém-nascido dentro do carro e quase multam uma mãe por transportar um bebé em cadeira homologada no banco da retaguarda virado para trás, em vez de o fazer no banco da frente (em carro com ABS ligado) e virado também para frente.
Num mundo real a liberdade é um bem precioso. A independência do ser humano catalisa um sem número de acções que causam satisfação e a sua ausência é por todos compreendida e alvo de constestação. Num mundo surreal, quem quer atestar um depósito de combustível tem de fornecer um cartão com a identificação à operadora de caixa do posto de abastecimento ou pedir a um acompanhante que permaneça junto da caixa enquanto abastece.
Esta noite vou olhar o céu com atenção; talvez encontre a segunda Lua de que Murakami fala.
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