Gosto de levar o puto ao infantário já equipada para correr. Aproveito a caminhada como aquecimento ligeiro e encho-me de deleite quando oiço o miúdo de dois anos perguntar-me se estou a usar o relógio da ginástica (dispositivo mágico caríssimo oferecido pela cara metade, que a partir do meu pulso debita informações como a frequência cardíaca e o local onde me encontro; esta última informação muito importante para quem comigo divide cama e mesa). É uma realidade que o esforço despendido na atividade da corrida é tremendo, mas cada vez mais penso em continuar e em melhorar as minhas marcas (ontem baixei de 8 min/km para 7 min/km e foi muito bom).
Enquanto corro só me lembro do que li algures há muito tempo, talvez décadas - Will Smith considera que a chave da vida é correr e ler. A corrida ensina-nos a não desistir e a leitura ensina-nos a aprender com a experiência dos outros. Durante a maior parte da minha vida só pratiquei a segunda opção, começo agora com a primeira. O entusiasmo tem sido crescente e o bem estar proporcionado por esta atividade matinal é viciante. E mais do que tudo, o facto de se aproximar mais uma reavaliação da minha condição cardíaca ainda torna tudo isto mais importante.
Também penso muito no Haruki Murakami e no seu auto retrato enquanto corredor de fundo e também eu consigo ter uma imagem de mim enquanto animal em esforço em que mais nada interessa, ou melhor, quase mais nada interessa. Faço aqui esta ressalva porque a realidade farense leva-me a estar de olho no bairro degradado que circundo nesta minha prática matinal e na comunidade cigana que o embebe. Se de início a segurança era a minha principal preocupação, agora é mais o descortinar de coisas estranhas que acontecem como a existência de dois grupos, um de mulheres e crianças e outro de homens, que contemplam a ria e que não estabelecem contactos entre si que ocupa parte do meu cérebro. A outra parte ocupa-se em acreditar que qualquer um dos outros frequentadores desportistas com quem me cruzo me encare como uma verdadeira desportista capaz de alcançar as marcas mais incríveis de sempre.
Acho que ao longo da minha vida já li todos os géneros possíveis e imaginários. Desde o considerado intelectualmente perfeito aos best-sellers pejados de sexo disfarçado de erotismo, passando pela fantasia dos hobbit’s ou de monstros alados. Uns perduraram na minha memória e outros nem por isso. Alguns destes livros ainda se mantêm cá em casa (apesar da manifesta falta de espaço) e outros já foram depositados em estantes no restaurante do Pingo Doce, na esperança que alguém os pudesse voltar a valorizar.
Sempre considerei que os livros são infinitamente melhores dos que as respetivas adaptações cinematográficas. Afinal quando se lê um livro, a abordagem cinematográfica é totalmente moldada pelas nossas emoções, ânsias e expectativas. Ler um livro é o nosso filme, e pronto! Mas agora depois de alguma reflexão consigo contradizer o meu anterior pensamento. Com a morte de Sue Townsend, a minha memória de Adrian Mole vai para a série e não para o livro, apesar da leitura dos vários volumes não se ter escapado da minha vida.
Aliás, a minha memória de Adrian Mole nem sequer se relaciona com a imagem atual de Stephen Mangan que supostamente foi seu intérprete. Disto tudo advém uma grande preocupação. Estarei eu a ficar velha??!!! Faltará já pouco tempo para começar a balbuciar expressões como “no meu tempo” ou “quando eu era nova”? Ou pior, estarei eu prestes a entabular conversas com qualquer estranho com que me cruze em salas de espera ou transportes públicos?
Temo que sim. É que ontem, enquanto esperava no dentista, só me apetecia meter conversa com o velhote que estava sentado na minha frente.
Desde que tive o fanico que a minha vida não mudou. Tem sido exatamente igual à vida que tive antes de ter o fanico. Continuo a acordar à mesma hora, a fazer as minhas refeições da forma que sempre fiz e a transformar o meu tempo ocioso de forma constante sem grandes modificações.
Com o fanico, não veio a serenidade e nem a ansiedade. Simplesmente tudo continuou da mesma forma que sempre foi. É certo que durante o fanico não sabia o que me estava a acontecer. Primeiro fiquei interrogativa sobre os sintomas, depois fiquei receosa com o prolongar da situação e por fim fiquei chorosa com o intensificar da condição.
Com o fanico, não me preocupei com ninguém, nem achei que poderia ser ali o meu fim ou início de algo realmente preocupante. Também não curti com a viagem de INEM de sirene ligada pelas ruas de Faro, pois o paramédico insistia em conversar comigo sobre alimentação, exercício físico, hábitos saudáveis e até sobre o novo nome da rua onde moro.
Com o fanico também não fiquei mais permissiva às coisas que me rodeiam, arranjando desculpas para aquilo que corre mal. Irritei-me ligeiramente com o segurança que me viu chegar ao Hospital de mala chique pendurada no antebraço e pensou que eu fosse acompanhante de um qualquer doente e que só depois de ver que me colocavam pulseira laranja é que percebeu que eu estava mesmo a ter um fanico. Também não gostei de ter de ir pedir a minha medicação depois de uma espera que considerei longa e que estaria a levar ao início de novo fanico.
Mas com o fanico gostei de uma nova coisa – a de estar mais de uma hora à espera de realizar exames médicos. Esta delonga foi amortizada com a leitura de mais um livro de Haruki Murakami (só mais um de entre tantos que já lí; quase todos acho) – O Sono. Foi aí que percebi que mais uma vez o universo murakamiano resolveu invadir o veruskiano. Tal como n’O Sono onde na realidade nada acontece a não ser a leitura de Anna Karenina, também na história do meu fanico a única coisa relevante foi mesmo a leitura de um conto.
Se no final d’O Sono tudo se conjuga para mais um final “à Murakami” onde não se encontram respostas e ainda surgem mais questões, também no final de toda esta minha história, auguro e anseio, por uma resolução/explicação do fanico “à Murakami”- uns bichos imaginários, e talvez malucos, entraram no meu coração maravilhoso e resolveram espicaçá-lo para que eu saísse do torpor dos últimos tempos.
A minha experiência da maternidade deve-se muito à descontração, aos médicos, mas sobretudo àqueles que me rodeiam. Ainda me recordo do meu grito de ajuda algo silencioso que ao ser entendido apenas por uma pequena minoria, quase que fez com que a minha imagem de perfeição caísse por terra. “Eu não percebo nada de bebés” ou “sei lá o que fazer com eles” ou ainda “sempre excluí esses seres da minha vida” foram expressões que desencadearam nas pessoas das minhas relações (sexuais e não sexuais) um esgar semi sorridente e com algo de preocupante.
Depressa aprendi que tinha de ler livros, ou não fosse eu uma teórica. Do Dr. Oz ou dos pediatras famosos que aparecem na televisão depressa me fartei e quando já quase desistia da empreitada lá me recomendaram os livros do Dr. T. Berry Brazelton. Esse sim, iria de encontro à minha filosofia. Depois do aval do próprio pediatra do meu filho (quiçá tão da velha guarda como o próprio Braselton) resolvi vender todos os outros livros sobre maternidade que tinha em casa e centrar-me no meu calhamaço de várias centenas de páginas. Foi uma boa decisão. Não tenho problemas com o sono do miúdo, com a sua alimentação e até já consegui poupar algumas idas ao pediatra só porque o miúdo chora sem razão aparente.
Claro que existem ainda situações em que o livro não ajuda, mas para isso lá me vou baseando no meu instinto que afinal tem muito de maternal e naquilo que aprendi ao longo da minha vida académica e profissional. Tudo o resto, ou cai no domínio do improviso ou no da observação de quem me rodeia.
E é aqui que entra a família de cinco, com ar perfeito que consegue monopolizar as educadoras e auxiliares do infantário do meu filhote. Basta só chegar o betinho das calças de pregas azuis celestes, com camisa a condizer e sapatos de vela, que todas as atenções se focam nele. À medida que vai dizendo bom-dia larga uma ou outra laracha sobre os três filhos (idades entre 1 ano e talvez 5) permitindo-lhe uma saída monumental do estabelecimento deixando todas as meninas que lá trabalham no estado semi-orgástico.
Nesse estado semi-orgástico fiquei eu, no dia em que vi a família inteira num centro comercial. Um dos filhos no carrinho, os outros a correr, a mãe totalmente descabelada a tentar controlá-los e o pai com um tabuleiro de cafés tentando não perder nenhum dos seus descendentes.
Agora sei que não interessa sermos perfeitos. Também sei agora que se já não insistir em fechar as caixas tupperware com as tampas da mesma cor, ninguém se vai importar com isso.
Finalmente acabei o 1Q84. Gostei, gostei muito, mas não o amei de paixão como os anteriores livros do Haruki Murakami. Talvez por ser demasiado longo, talvez por ter demorado muito tempo a lê-lo (especialmente o terceiro volume) ou mesmo talvez por não ser tão original e tão bom como os anteriores.
Depois de duas luas no céu, polícias com armas demasiado ameaçadoras e amores entre personagens que não se viam há anos e até uma gravidez concebida “sem pecado” tudo volta a uma aparente normalidade. Quem ama pode viver esse amor, o Povo Pequeno foi deixado para trás e o passado negro pode ser obliterado para sempre e nem sequer crisálidas de ar voltarão a ser tecidas.
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